Antes de a região de Champagne, na França, ganhar renome mundial pela produção de vinhos espumantes, a Inglaterra já desempenhava um papel fundamental na criação desse tipo de vinho. A ideia de um vinho espumante de alta qualidade, produzido com garrafas resistentes à pressão, tem suas raízes em avanços tecnológicos e uma cultura de consumo de vinhos que emergia no século XVII na Inglaterra.
Durante o século XVII, a Inglaterra se destacou como um dos principais consumidores de vinhos franceses, incluindo os vinhos provenientes da região de Champagne. Contudo, ao contrário do que muitos podem imaginar, o clima mais frio da Inglaterra e a constante busca por vinhos que pudessem suportar longos períodos de transporte e armazenamento incentivaram uma série de inovações.
Uma das principais dificuldades enfrentadas pelos produtores de vinhos espumantes na época era o armazenamento seguro do vinho com bolhas, sem que as garrafas explodissem devido à pressão interna. O desenvolvimento de garrafas de vidro resistentes à pressão foi uma das contribuições mais significativas da Inglaterra para a produção de vinhos espumantes.
O artesão inglês Sir Kenelm Digby é frequentemente creditado como o responsável por essa inovação. Por volta de 1630, ele desenvolveu uma técnica que permitia a fabricação de garrafas de vidro muito mais espessas e resistentes do que aquelas produzidas na França.
Essas garrafas suportavam a pressão interna criada pelo dióxido de carbono gerado durante a fermentação do vinho, essencial para a criação de bolhas nos vinhos espumantes. O uso de carvão como fonte de combustível para as fornalhas dos vidreiros ingleses, em vez de madeira, também foi uma inovação crucial.
Isso permitiu que o vidro fosse fundido a temperaturas mais altas, resultando em uma garrafa mais forte e resistente. Sem esse avanço na produção de garrafas, o desenvolvimento seguro de vinhos espumantes teria sido extremamente difícil.
O Método Inglês
Outro fator que impulsionou a invenção do espumante na Inglaterra foi o gosto peculiar dos consumidores ingleses. Enquanto o vinho tranquilo (sem efervescência) era o padrão na Europa continental, os ingleses começaram a apreciar vinhos com uma certa efervescência.
Isso se deve, em parte, à forma como o vinho era armazenado e transportado da França para a Inglaterra. Em muitos casos, o vinho era engarrafado antes de completar sua fermentação, o que resultava em um leve espumante quando a fermentação era retomada dentro das garrafas mais resistentes.

Os vinhos espumantes, conhecidos como “vinhos com bolhas”, se tornaram uma bebida de prestígio entre a aristocracia inglesa. O desejo crescente por esse tipo de vinho incentivou os produtores franceses e ingleses a aperfeiçoar a técnica de produção, levando à criação do método tradicional, que hoje é sinônimo de vinhos espumantes de alta qualidade.
O Método Ancestral
Enquanto a Inglaterra desenvolvia essas inovações tecnológicas, a fermentação natural em garrafa já era conhecida em várias partes da Europa, incluindo no sudoeste da França, onde se utilizava o “método ancestral”, que permitia que o vinho fermentasse de forma natural, criando bolhas sem necessidade de adição posterior de açúcar ou leveduras. Contudo, a Inglaterra foi pioneira ao dominar o controle da pressão e criar garrafas resistentes o suficiente para manter a efervescência desejada.
O desenvolvimento de garrafas de vidro resistentes à pressão, que foi um dos marcos dessa revolução, mostra como o intercâmbio entre diferentes culturas – no caso, a França e a Inglaterra – moldou a produção de vinhos de uma forma profunda e duradoura. A contribuição inglesa para o mundo dos espumantes vai além de uma simples melhoria técnica.
O fato de os ingleses terem adaptado e aperfeiçoado a técnica de armazenamento de vinhos espumantes é uma evidência clara de como a demanda do consumidor pode estimular inovações no setor de bebidas. O que muitos consideram a “invenção” do vinho espumante foi, na verdade, o resultado de décadas de experimentação, aperfeiçoamento e inovações, com a Inglaterra sendo uma peça-chave nesse processo.
A Precedência Inglesa
A ideia popular de que o espumante foi uma criação francesa, atribuída ao monge Dom Pérignon, está enraizada em um certo romantismo, mas a história revela que os ingleses já estavam consumindo e refinando a técnica de vinhos espumantes antes de Champagne ganhar fama. O espumante inglês, produzido a partir de vinhos importados da França, não apenas demonstrava a viabilidade desse estilo de vinho, mas também empurrava os limites tecnológicos e estéticos da vinificação.

Enquanto Dom Pérignon, um talentoso monge da região de Champagne, introduziu inovações como o blending de uvas para criar melhores vinhos tranquilos, ele não criou o método espumante. Na verdade, as garrafas resistentes inglesas e o gosto dos consumidores ingleses já pavimentavam o caminho para o sucesso do vinho espumante.
A Relevância dos Espumantes Ingleses
Atualmente, a Inglaterra voltou a ser um destaque na produção de vinhos espumantes de alta qualidade. O clima da região sul da Inglaterra, em áreas como Sussex e Kent, é surpreendentemente semelhante ao clima de Champagne, permitindo o cultivo de uvas adequadas para a produção de espumantes de estilo clássico.
A produção de espumantes na Inglaterra retoma a ganhar relevância, recuperando a herança histórica de um país que sempre esteve à frente na fabricação de garrafas e na apreciação dos vinhos efervescentes. Com terroirs semelhantes aos de Champagne, o sul da Inglaterra tem produzido vinhos espumantes de altíssima qualidade, muitas vezes superando até mesmo alguns dos espumantes mais renomados da França em competições internacionais.
Isso reafirma a capacidade da Inglaterra de não apenas ser pioneira no passado, mas também de se reinventar como uma grande produtora de espumantes na era moderna.
Vinhos espumantes ingleses têm ganhado reconhecimento internacional e frequentemente superam seus equivalentes franceses em competições globais, um retorno ao pioneirismo que a Inglaterra demonstrou séculos atrás.
Conclusão
Muito antes da região de Champagne se tornar o ícone dos vinhos espumantes, a Inglaterra já desempenhava um papel crucial no desenvolvimento dessa bebida. A invenção das garrafas de vidro resistentes à pressão, o gosto dos consumidores ingleses por vinhos com bolhas e as inovações tecnológicas criadas no país formaram as bases para o sucesso dos vinhos espumantes modernos.
Hoje, enquanto a Champagne reina soberana no imaginário coletivo, os espumantes ingleses estão revivendo uma história de excelência e inovação que remonta ao século XVII, lembrando-nos que a história dos vinhos espumantes é muito mais diversa e fascinante do que aparenta.
O que é particularmente interessante sobre essa história é a maneira como ela desafia a narrativa tradicional que coloca a França, especificamente a região de Champagne, como o berço exclusivo dos vinhos espumantes. Embora a Champagne tenha conquistado uma posição de destaque no cenário global, é essencial reconhecer que o surgimento dos vinhos espumantes foi um esforço colaborativo, impulsionado por várias nações.
Portanto, ao considerar a história dos vinhos espumantes, é fundamental reconhecer que a narrativa vai além de uma única região ou figura histórica. A invenção e o aperfeiçoamento dos espumantes são um exemplo da complexa rede de influências culturais, tecnológicas e mercadológicas que moldaram a indústria vinícola global.

A Inglaterra, com sua contribuição única para a criação de garrafas resistentes à pressão e seu gosto por vinhos espumantes, provou que inovação e tradição podem andar lado a lado, revivendo um legado que continua a brilhar nas taças de espumante ao redor do mundo.
Esse resgate histórico não apenas enriquece nossa compreensão sobre a evolução do vinho, mas também nos lembra de que o vinho, em todas as suas formas, é um produto cultural profundamente enraizado nas interações humanas, no intercâmbio de ideias e na constante busca por novas formas de expressão sensorial.
A história do espumante inglês, muitas vezes negligenciada, é uma parte vital desse mosaico global que vale a pena ser celebrada e reconhecida.